sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Os Chorões da Escuridão

Desde 2002 escrevo esporadicamente uma série de contos sobre um mesmo núcleo familiar intitulado Os Chorões da Escuridão.
O texto abixo é o primeiro deles:

Chorõres
                De menino, mano chorava muito, chorava e chorava por qualquer corte no dedo, qualquer gosto não feito, qualquer coque no coco. Se levava bolada no campo, jogando c’os filhos dos outros colonos, chorava. É que mano era goleiro, coitado, miudinho e ruim de bola que nem que ele, só assim que jogava. Chorava, mas já era macho! Tanto é que mesmo c’os olhos vermelhos não largava do gol. Foi menino chorão até a morte do Pai.
                Pai ficava muito bravo quando via ele chorando, dava peia e tudo, mas Tonho só chorava. Quando Pai tava morrendo daquela moléstia que homem “bota os pulmão pela boca”, chamou mano no quarto dele e falou bem assim – Tonho, sempre me disgostô vê home chorano; fio meu então, huummmm!... Cê sabe que pai tá morreno, mas tá morreno home! Num quero dexá fio fresco não – e Tonho, que ainda tava quieto, engoliu o choro que já tava ali – Cê vai me prometê que num chora mais. Só ansim pai vai tranqüilo – Tonho apertou ainda mais o choro e falou c’os olhos já avermelhando – Mas como é que eu faço? Num chóro porque quero, chóro por que me vem as água derramano dos oio – aí Pai respirou tão fundo, mas tão fundo, que eu pensei que nunca mais que ele fosse respirar. Depois deu um daqueles ataques de tosse nele, daqueles de encher dois canecos de catarro.
                Quando se controlou, Pai disse – Óia, fio, pai tamém chora, sabia? – o mano até esqueceu o choro que tava apertado na garganta e quase sorriu – Pai jura que chora? – perguntô meio com medo – Pai chora, fio, mais ninguém num vê não sinhô. Ocê preste muita atenção na história que eu vô contá.
                E contou:
                Quando pai inda era menino e nem guentava c’o cabo de enxada, Vô viu pai chorano por causa de chacota dos mano, que dava coque e beliscão no pai. Vô iscorreu c’os mano e quando ficô sozinho c’o pai, ralhô com ele e disse – Home num chora não. Engole esse choro muleque! – e eu que era orgulhoso, engoli logo de vergonha do Vô, e preguntei – Pai num chora não? – e pra minha surpresa Vô respondeu – Toda noite! – veno a cara de bobo do pai, Vô riu e continuô – Pai chora toda noite, só que ninguém nunca viu não – então preguntei – Nem mãe? – Menos ainda ela! Mas num pense ocê que pai fica se borrano todo dia que num é ansim não. Pai ouviu dum preto que trabaiava na fazenda uma história muito da sofrida, mas muito da bunita.
                Bento, esse era o nome do preto, contô que vida de escravo era muito doída; doía no lombo e no peito, mais no peito que no lombo – Pruque lombo acustuma, mas o peito nunca que vai se acustumá a sê tratado feito bicho – disse que se preto fosse chorá toda veiz que doesse o lombo ou o peito, ia secá que nem a cumbuca d’água que a pretaiada toda bebe na roça – É uma só prum monte de nóis! – tamém num podia ficá trancano tudo na goela quinem que cê tá fazeno agora. Bento insinô pro pai que toda noite, na mema hora, preto chegava num canto donde que ninguém num visse ele e dexava derramá uma lágrima de cada oio. Mais tinha que escorrê na cara toda, podia apará c’oa mão não, tinha que corrê rosto pra lavá toda dô, do lombo ou do peito. Ansim num engasgava c’o choro e nem dexava de sê home – Faz disso uma prece, minino, e nunca mais que cê vai chorá c’os ôtro oiano – me disse o preto – Mais tem que sê toda noite; na mema hora; só uma de cada oio; a cara toda; pode faiá não!
                Aí vô falô que ficô cismado e preguntô pro preto:
                E se na hora num dé vontade? E se ocê num quisé chorá, se num tivé triste nem doído?
                Diz que Bento, esse era o nome do preto, falô que a lida do dia – Sempre dá dô no lombo, inda mais de preto já meio véio – disse que memo que dô fosse poca, tristeza passava não, porque preto sabia que n’ôtro dia ia sê iguar – Inté morrê! – mas alembrô que minino branco sofria ansim não, então interô falano que se não tivesse vontade de chorá, era só se alembrá – De Nosso Senhor – que padre falô que memo inocente, morreu pregado na encruzilhada de pau – E ói que ele nem era preto! Só isso já dá vontade de chorá.
                Vô falô que foi ansim que ele aprendeu a chorá toda noite, iscundido. E era ansim que pai divia fazê. E pai feiz, inté hoje!
                Escuta fio. Hoje à noite pai chora pela última veiz, depois... trabaia ocê; sua ocê; sofre ocê e chora ocê.
                Pai amanheceu no caixão.
                No enterro do Pai foi a última vez que vi mano chorando. Eu, como sou mulher, sempre pude chorar à vontade.
                Deus me livre e guarde se o Tonho me ouvisse. Bate na madeira “treis veiz”. Mas foi assim que eu, brechando da janela, vi, e ouvi tudo que Pai disse pro mano. E foi assim que mano continuou a tradição da família dos chorões da escuridão.

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